Como professor de Criminologia, tive problemas durante algum tempo, devido ao fato de que, seguindo a maioria daqueles que escrevem livros sobre assuntos policiais, eu nunca havia sido policial. Contudo, alguns elementos da comunidade acadêmica norte-americana, tal como eu, agiram muitas vezes precipitadamente ao apontar erros da nossa polícia. Dos incidentes que lemos nos jornais, formamos imagens estereotipadas, como as do policial violento, racista, venal ou incorreto. O que não vemos são os milhares de dedicados agentes da polícia, homens e mulheres, lutando e resolvendo problemas difíceis para preservar nossa sociedade e tudo que nos é caro.
Muitos dos meus alunos tinham sido policiais, e eles várias vezes opunham às minhas críticas o argumento de que uma pessoa só poderia compreender o que um agente da polícia tem de suportar quando se sentisse na pele de um policial. Por fim, me decidi a aceitar o desafio. Entraria para a polícia e, assim, iria testar a exatidão daquilo que vinha ensinando. Um dos meus alunos (um jovem agente que gozava licença para freqüentar o curso, pertencente à Delegacia de Polícia de Jacksonville, Flórida) me incitou a entrar em contato com o Xerife Dale Carson e o Vice-Xerife D. K. Brown e explicar-lhes minha pretensão.
Lutando por um distintivo.
Jacksonville parecia-me o lugar ideal. Um porto marítimo e um centro industrial em crescimento acelerado. Ali ocorriam, também, manifestações dos maiores problemas sociais que afligem nossos tempos: crime, delinqüência, conflitos raciais, miséria e doenças mentais. Tinha, igualmente, a habitual favela e o bairro reservado aos negros. Sua força policial, composta por 800 elementos, era tida como uma das mais evoluídas dos Estados Unidos.
Esclareci ao Xerife Carson e ao Vice-Xerife Brown de que pretendia um lugar não como observador, mas como patrulheiro uniformizado, trabalhando em expediente integral durante um período de quatro a seis meses. Eles concordaram, mas impuseram também a condição de que eu deveria, primeiro, preencher os mesmos requisitos que qualquer outro candidato a policial, uma investigação completa do caráter, exame físico, e os mesmos programas de treinamento. Haveria outra condição com a qual concordei prontamente em nome da moral. Todos os outros agentes deviam saber quem eu era e o que estava fazendo ali. Fora disso, em nada eu me distinguiria de qualquer agente, desde o meu revólver Smith and Wesson .38 até o distintivo e o uniforme.
O maior obstáculo foram as 280 horas de treinamento estabelecidas por lei. Durante quatro meses (quatro horas por noite e cinco noites por semana), depois das tarefas de ensino teórico, eu aprendia como utilizar uma arma, como aproximar-me de um edifício na escuridão, como interrogar suspeitos, investigar acidentes de trânsito e recolher impressões digitais. Por vezes, à noite, quando regressava a casa depois de horas de treinamento de luta para defesa pessoal, com os músculos cansados, pensava que estava precisando era de um exame de sanidade mental por ter-me metido naquilo. Finalmente, veio a graduação e, com ela, o que viria a ser a mais compensadora experiência da minha vida.
Patrulhando a rua.
Ao escrever este artigo, já completei mais de 100 rondas como agente iniciado, e tantas coisas aconteceram no espaço de seis meses que jamais voltarei a ser a mesma pessoa. Nunca mais esquecerei também o primeiro dia em que montei guarda defronte à porta da Delegacia de Jacksonville. Sentia-me, ao mesmo tempo, estúpido e orgulhoso no meu novo uniforme azul e com a cartucheira de couro.
A primeira experiência daquilo que eu chamo de minhas “lições de rua” aconteceu logo de imediato. Com meu colega de patrulha, fui destacado para um bar, onde havia distúrbios, no centro da zona comercial da cidade. Encontramos um bêbado robusto e turbulento que, aos gritos, se recusava a sair. Tendo adquirido certa experiência em admoestação correcional, apressei-me a tomar conta do caso. “Desculpe, amigo”, disse eu sorridente, “não quer dar uma chegadinha aqui fora para bater um papo comigo?” O homem me encarou incrédulo, com os olhos vermelhos. Cambaleou e me deu um empurrão no ombro. Antes que eu tivesse tempo de me recuperar, chocou-se de novo comigo e, desta vez, fazendo saltar da dragona a corrente que prendia meu apito. Após breve escaramuça, conseguimos levá-lo para a radiopatrulha.
Como professor universitário, eu estava habituado a ser tratado com respeito e deferência e, de certo modo, presumia que isso iria continuar assim em minhas novas funções. Estava porém, aprendendo que meu distintivo e uniforme, longe de me protegerem do desrespeito, muitas vezes atuavam como um imã atraindo indivíduos que odiavam o que eu representava. Confuso, olhei para meu colega, que apenas sorriu.
Teoria e prática.
Nos dias e semanas seguintes, eu iria aprender mais coisas. Como professor, sempre procurava transmitir aos meus alunos a idéia de que era errado exagerar o exercício da autoridade, tomar decisões por outras pessoas ou nos basearmos em ordens e mandatos para executar qualquer tarefa. Como agente de polícia, porém, fui muitas vezes forçado a fazer exatamente isso. Encontrei indivíduos que confundiam gentileza com fraqueza – o que se tornava um convite à violência. Também encontrei homens, mulheres e crianças que, com medo ou em situações de desespero, procuravam auxílio e conselhos no homem uniformizado.
Cheguei à conclusão de que existe um abismo entre a forma como eu, sentado calmamente no meu gabinete com ar condicionado, conversava com o ladrão ou assaltante à mão armada, e a maneira pela qual os patrulheiros lidam com esses homens – quando eles se mostram violentos, histéricos ou desesperados. Esses agressores, que anteriormente me pareciam tão inocentes, inofensivos e arrependidos depois do crime cometido, como agente de polícia, eu os encarava pela primeira vez como uma ameaça à minha segurança pessoal e a da nossa própria sociedade.
Aprendendo com o medo.
Tal como o crime, o medo deixou de ser um conceito abstrato para mim, e se tornou algo bem real, que por várias vezes senti: era a estranha impressão em meu estômago, que experimentava ao me aproximar de uma loja onde o sinal de alarme fora acionado; era uma sensação de boca seca quando, com as lâmpadas azuis acesas e a sirena do carro ligada, corríamos para atender a uma perigosa chamada onde poderia haver tiroteio.
Recordo especialmente uma dramática lição no capítulo do medo. Num sábado à noite, patrulhava com meu colega uma zona de bares mal freqüentados e casas de bilhares, quando vimos um jovem estacionar o carro em fila dupla. Dirigimo-nos para o local, e eu pedi que arrumasse devidamente o automóvel, ou então que fosse embora, ao que ele respondeu inopinadamente com insultos. Ao sairmos da radiopatrulha e nos aproximarmos do homem, a multidão exaltada começou a nos rodear. Ele continuava a nos insultar, recusando-se a retirar o carro. Então, tivemos que prendê-lo. Quando o trouxemos para a viatura da polícia, a turba nos cercou completamente. Na confusão que se seguiu, uma mulher histérica abriu meu coldre e tentou sacar meu revólver.
De súbito, eu estava lutando para salvar minha vida. Recordo a sensação de verdadeiro terror que senti ao premir o botão do armeiro na radiopatrulha onde se encontravam nossas armas longas. Até então, eu sempre tinha defendido a opinião de que não devia ser permitido aos policiais o uso de armas longas, pelo aspecto “agressivo” que denotavam, mas as circunstâncias daquele momento fizeram mudar meu ponto de vista, porque agora era minha vida que estava em risco. Senti certo amargor quando, logo na noite seguinte, voltei a ver, já em liberdade, o indivíduo que tinha provocado aquele quase motim – e mais amargurado fiquei quando ele foi julgado e, confessando-se culpado, condenaram-no a uma pena leve por “violação da ordem”.
Vítimas silenciosas.
Dentre todas as trágicas vítimas que vi durante seis meses, uma se destaca. No centro da cidade, num edifício de apartamentos, vivia um homem idoso que tinha um cão. Era motorista de ônibus aposentado. Encontrava-os quase sempre na mesma esquina, quando me dirigia para o serviço, e por vezes me acompanhavam durante alguns quarteirões.
Certa noite fomos chamados por causa de um tiroteio numa rua perto do edifício. Quando chegamos, o velho estava estendido de costas no meio de uma grande poça de sangue. Fora atingido no peito por uma bala e, em agonia, me sussurrou que três adolescentes o tinham interceptado e lhe exigiram dinheiro. Quando viram que tinha tão pouco, dispararam e o abandonaram na rua.
Em breve, comecei a sentir os efeitos daquela tensão diária a que estava sujeito. Fiquei doente e cansado de ser ofendido e atacado por criminosos que depois seriam quase sempre julgados por juizes benevolentes e por jurados dispostos a conceder aos delinqüentes “nova oportunidade de se reintegrarem ao convívio da sociedade”. Como professor de Criminologia, eu dispunha do tempo que queria para tomar decisões difíceis. Como policial, no entanto, era forçado a fazer escolhas críticas em questão de segundos (prender ou não prender, perseguir ou não perseguir), sempre com a incômoda certeza de que outros, aqueles que tinham tempo para analisar e pensar, estariam prontos para julgar e condenar aquilo que eu fizera ou aquilo que não havia feito.
Como policial, muitas vezes fui forçado a resolver problemas humanos incomparavelmente mais difíceis daqueles que enfrentara para solucionar assuntos correcionais ou de sanidade mental: rixas familiares, neuroses, reações coletivas perigosas de grandes multidões, criminosos. Até então, estivera afastado de toda espécie de miséria humana que faz parte do dia-a-dia da vida de um policial.
Bondade em uniforme.
Freqüentemente, fiquei espantado com os sentimentos de humanidade e compaixão que pareciam caracterizar muitos dos meus colegas agentes da polícia. Conceitos que eu considerava estereotipados eram, muitas vezes, desmentidos por atos de bondade: um jovem policial fazendo respiração boca-a-boca num imundo mendigo, um veterano grisalho levando sacos de doces para as crianças dos guetos, um agente oferecendo a uma família abandonada dinheiro que provavelmente não voltaria a reaver.
Em conseqüência de tudo isso, cheguei a humilhante conclusão de que tinha uma capacidade bastante limitada para suportar toda a tensão a que estava sujeito. Recordo em particular certa noite em que o longo e difícil turno terminara com uma perseguição a um carro roubado. Quando largamos o serviço, eu me sentia cansado e nervoso. Com meu colega, estava me dirigindo para um restaurante a fim de comer qualquer coisa, quando ouvimos o som de vidros que se partiam, proveniente de uma igreja próxima, e vimos dois adolescentes cabeludos fugindo do local. Nós os alcançamos e pedi a um deles que se identificasse. Ele me olhou com desprezo, xingou-me e virou as costas com intenção de se afastar. Não me lembro do que senti. Só sei que o agarrei pela camisa, colei seu nariz bem no meu e rosnei: “Estou falando com você, seu cretino!”
Então meu colega me tocou no ombro, e ouvi sua confortante voz me chamando à razão: “Calma, companheiro!” Larguei o adolescente e fiquei em silêncio durante alguns segundos. Depois me recordei de uma das minhas lições, na qual dissera aos alunos: “O sujeito que não é capaz de manter completo domínio sobre suas emoções, em todas as circunstâncias, não serve para policial”.
Desafio complicado. Muitas vezes perguntara a mim próprio: “Por que uma pessoa quer ser policial?” Ninguém está interessado em dar conselhos a uma família com problemas às três da madrugada de um domingo, ou em entrar às escuras num edifício que foi assaltado, ou em presenciar, dia após dia, a pobreza, os desequilíbrios mentais, as tragédias humanas. O que faz um policial suportar o desrespeito, as restrições legais, as longas horas de serviço com baixo salário, o risco de ser assassinado ou mutilado?
A única resposta que posso dar é baseada apenas na minha curta experiência como policial. Todas as noites eu voltava para casa com um sentimento de satisfação e de ter contribuído com algo para a sociedade – coisa que nenhuma outra tarefa me havia dado até então.
Todo agente de polícia deve compreender que sua aptidão para fazer cumprir a lei, com a autoridade que ele representa, é a única “ponte” entre a civilização e o submundo dos fora-da-lei. De certo modo, essa convicção faz com que todo o resto (o desrespeito, o perigo, os aborrecimentos) mereça que se façam quaisquer sacrifícios.
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